DUNGA, A PROSA E A POESIA

Recebi do escritor e companheiro Wilame Jansen, crônica que versa sobre nosso futebol. Muito envolvente e bem humorada. Vale a pena à leitura.

O desempenho da Seleção de Dunga foi o tema de conversas com meus prezados e pacientes listeiros, durante a realização da Copa Africana. Tive a satisfação de receber enriquecedora diversidade de opiniões: desde a aprovação racionalizada do estilo dunga até críticas ferrenhas à figura polêmica do treinador. Curioso foi perceber a maioria de uns e outros concordando que o Brasil conquistaria o hexa. Para todos nós, o futebol brasileiro é mesmo o bom, seja com o dorminhoco Feola (1958), seja com o atento xerife Dunga (2010).
Destaco material recebido do escritor e jornalista Homero Fonseca, coordenador do Sarau Plural, juntamente com o ator e animador cultural, Sérgio Gusmão. Foram textos literários, selecionados para uma seção do Sarau Plural, que abordou o tema “O Futebol e a Literatura”. O evento, realizado na véspera do fatídico jogo Brasil x Holanda, recebeu o sugestivo nome de Gol de Letra.

Capaz de nos entreter o ano inteiro e de parar o país durante trinta dias, de quatro em quatro anos, o futebol brasileiro é uma das mais fortes expressões de nossa identidade psicossocial. Sua importância, no entanto, ainda não despertou o interesse, na mesma dimensão, de psicólogos e sociólogos, se medido pelo pequeno número de trabalhos acadêmicos sobre o tema. Uma notícia alvissareira foi a criação do Núcleo de Futebol na Universidade Federal de Pernambuco. Vale saudar a iniciativa.

Os artistas também recorrem ao tema com economia, embora registrem trabalhos de excelentes qualidades na pintura, no cinema, no teatro, na música e na literatura. Tendo em mãos apenas o material recebido por e-mail, durante a Copa, sem nenhuma pesquisa complementar, percebe-se que desde cedo o estilo brasileiro de jogar foot-ball contrasta com o dos europeus por uma série de qualidades. Na crônica Futebol Mulato, anterior à Copa de 1938, Gilberto Freire já se referia:

(...) a ginga, a manha e a astúcia dos nossos pretalhões bem brasileiros e dos mulatos ainda mais brasileiros (...) Os nossos passes, os nossos pitus (dribles), os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, alguma coisa de dança (...) Dança que permitia o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dança lírica.

Em 1958, antes da Copa da Suécia, Nelson Rodrigues, em famosa crônica falava do nosso complexo de vira-latas. Só no meio da competição perdemos o medo de substituir os brancos Mazzola, Joel, Alagoano, Dino Sani e De Sordi, pelos pretos e mulatos Pelé, Garrincha, Vavá, Zito, e Djalma Santos. O cinema e a musica prestaram inúmeras homenagens a Pelé, Didi, Garrincha e a própria Seleção Canarinha.

O reconhecimento internacional do jeito próprio do brasileiro jogar futebol fica eternizado em celebre artigo escrito pouco depois da Copa de 74, pelo cineasta italiano, Píer Paolo Pasolini, diretor de “Teorema”, onde afirma: “O futebol europeu se aproxima da prosa, enquanto o brasileiro representa a quintessência da poesia”.

O futebol de prosa é o chamado sistema (o futebol Europeu). (...) fundado por uma série de passagens geométricas (...) O futebol de poesia é o latino americano. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente técnico, no México, em 1970, a prosa estetizante italiana foi batida pela poesia brasileira. (Pasolini, O Gol Fatal -1970 – tradução de Maurício Santana Dias).

Um belo exemplo do interesse da literatura pelo futebol é o poema, transcrito a seguir, de João Cabral de Melo Neto (Campeão Juvenil de Futebol, pelo Santa Cruz, em 1935).

O futebol brasileiro evocado da Europa

A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e, embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.


Ontem, dia 02/07/10, o jogo Brasil x Holanda não fez justiça ao futebol brasileiro. Só o nosso gol foi poético, de talentos individuais: um passe em profundidade e um gol do gênio oportunista, improvisador. Passe e gol, dois dos três elementos da poesia do futebol brasileiro. O terceiro é o drible, segundo Pasolini.

Mas, para o projeto modernoso, racional, científico de Dunga bastava meio a zero, conforme anteciparam Macaco Simão, Homero Fonseca e Sérgio Gusmão. Aí, deu no que deu.

Comentários

  1. Belíssimo o texto... mas a data é 02 07 2010

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  2. Eu sei, postei da forma que recebi (talvez o autor tenha previsto com antecedência). Mas vou retificar mesmo assim. Valeu!

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