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(Jango é fotografado pela mulher Maria Tereza em
seu exílio no Uruguai
em 1964. Foto: acervo FGV)
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Instigado pelos milicos, o governo do Uruguai “advertiu os brasileiros
no exílio, especificamente o presidente João Goulart, pela violação do direito
de asilo político ao publicar documento considerado subversivo pelo governo
brasileiro”, segundo um documento da diplomacia britânica. No texto, Jango
destaca seu perfil “liberal” e “cristão” para se distanciar do estigma de
comunista que tentaram lhe impingir.
“A subversão, fartamente denunciada e muito bem paga, na profusão de
rádios, jornais e televisão, era o preparo da mentira do perigo comunista, que
iria constituir o ponto de partida para concretização da quartelada, a fim de
que, assim, pudessem esmagar as justas aspirações populares que o meu Governo
defendia”, diz Jango, denunciando o papel da imprensa no golpe. É preciso
destacar que, apesar do massacre midiático, o presidente contava com apoio
popular quando foi derrubado e poderia ser reeleito em cinco capitais
–inclusive no Rio de Janeiro do golpista Carlos Lacerda. “Hoje, lançam contra
mim toda a sorte de calúnias. Sei que continuarão a injuriar-me. Mas o
julgamento que respeito e que alguns temem é o do povo brasileiro”, escreveu
Jango.
Este texto de João Goulart é muito pouco divulgado, talvez por ser tão
esclarecedor do pensamento do ex-presidente e de suas convicções democráticas.
Reproduzo-o aqui, na íntegra, para que a história lhe faça justiça.
***
Por João Goulart, agosto de 1964
Faz hoje dez anos que a Nação, traumatizada, assistiu ao supremo
sacrifício de Getúlio Vargas. Nunca deixei de me dirigir a todos vós, neste
dia, que está definitivamente incorporado à nossa história, marcando, no Brasil
republicano, o instante heróico do saudoso estadista que empenhou a própria vida
para conter as terríveis forças do obscurantismo e para que pudéssemos
prosseguir na dura caminhada da libertação do nosso povo e da nossa Pátria. É,
pois, a luta do povo pela liberdade e pela conquista das reformas estruturais
profundas e cristãs da sociedade brasileira que, mais uma vez, conduz ao
encontro dos vossos anseios e das vossas mais aflitas esperanças.
Deixo, assim, no exílio em que me acho, o silêncio a que me havia
imposto para voltar à intimidade honrada dos vossos lares, muitos já violados,
dos vossos sindicatos, oprimidos; das vossas associações, atingidas pelo ódio
da reação, com uma palavra de advertência, mas, sobretudo, de fé inquebrantável
no destino do nosso país. Esta palavra já não parte do Presidente da República.
Não vos posso, também, dirigi-la da praça pública, onde tantas vezes nos
encontramos. Dominam a Nação o arbítrio e a opressão.
A reconquista das liberdades democráticas deve constituir o ponto básico
e irrenunciável da nossa luta, a luta corajosa do povo brasileiro para a
emancipação definitiva do Brasil. Duas vezes preferi o sacrifício pessoal de
poderes constitucionais à guerra civil e ao ensangüentamento da Nação. Duas
vezes evitei a luta entre irmãos. Só Deus sabe quanto me custou a deliberação a
que me impus e pude impor a milhões de patriotas.
Em 1961, tolerei as maquinações da prepotência e consenti na limitação
de poderes que a Constituição me conferia, para, depois, restaurá-los
democraticamente, pela livre e esmagadora deliberação da vontade popular. Nunca
recorri à violência. Os tanques, os fuzis e as espadas jamais, historicamente,
conseguiram substituir, por muito tempo, a força do direito e da justiça. A
função que a Constituição lhes impõe é a defesa da soberania do país e de suas
instituições e nunca a tutela do pensamento do povo, para suprimir e esmagar
suas liberdades, como pretendem alguns chefes militares.
Este ano, depois de recusar-me à renúncia que nunca admiti, resolvi,
pelo conhecimento real da situação militar, não consentir no massacre do povo.
Não só porque contrariava minha formação cristã e liberal, mas porque eu sabia
que o povo estava desarmado. Eu sabia que a subversão, fartamente denunciada e
muito bem paga, na profusão de rádios, jornais e televisão, era o preparo da
mentira do perigo comunista, que iria constituir o ponto de partida para
concretização da quartelada, a fim de que, assim, pudessem esmagar as justas
aspirações populares que o meu Governo defendia. Baniram, ditatorialmente, o
direito de defesa; humilharam a consciência jurídica nacional; suprimiram o
poder dos tribunais legítimos. Invadiram universidades, queimaram bibliotecas;
não respeitaram sequer as mesmas igrejas onde antes desfilavam as contas de
seus rosários. Trabalhadores, estudantes, jornalistas, profissionais liberais,
artistas, homens e mulheres são presos pelo único crime da opinião pública, da
palavra ou das idéias. Cassam centenas de mandatos populares. Porventura são
trapos de papel os compromissos internacionais que assumimos na Declaração
Universal dos Direitos do Homem e na Carta organizatória das Nações Unidas?
Pessoalmente, tudo posso suportar, como parcela do meu destino na luta
da emancipação do povo brasileiro. O que não posso é calar diante dos
sofrimentos impostos a milhares de patrícios inocentes e do esmagamento das
nossas mais caras tradições republicanas. Hoje, lançam contra mim toda a sorte
de calúnias. Sei que continuarão a injuriar-me. Mas o julgamento que respeito e
que alguns temem é o do povo brasileiro. É possível que haja cometido erros no
meu Governo. Erros da contingência humana. Mas tudo fiz para identificar-me com
os sentimentos do povo e da Nação e posso afirmar que assegurei a todos os
brasileiros, inclusive a meus adversários, o exercício mais amplo das
liberdades constitucionais. Deus não faltará com seu apoio à energia do povo
para a reconquista de suas liberdades. Ninguém impedirá o povo de construir o
desenvolvimento nacional e dirigir o seu próprio destino.
Tudo fiz por um Governo democrático e justo, no qual se processassem,
pacificamente, com a colaboração dos órgãos legislativos, as transformações
essenciais da sociedade brasileira; quis um Governo que incorporasse à família
nacional, com acesso aos benefícios da civilização do nosso tempo, os milhões
de patrícios humildes do campo e as áreas marginalizadas da população urbana;
empenhei-me por um Governo que exprimisse os anseios legítimos dos
trabalhadores, dos camponeses, dos estudantes, dos intelectuais, dos
empresários, dos agricultores, do homem anônimo da rua para, todos juntos,
travarmos a difícil luta contra a miséria, a doença, o analfabetismo, o
desemprego e a fome. Sobre mim recaiu, então, todo o ódio dos interesses
contrariados.
Promovi o reatamento de relações diplomáticas com as nações do mundo e
assumi a responsabilidade de alargar nossos mercados, no interesse único da
economia do país e do bem-estar do nosso povo. Executei uma política externa
independente. Condenamos o colonialismo, sob qualquer disfarce, defendendo os
princípios da não-intervenção e da autodeterminação dos povos. Nunca transigi
com a dignidade do meu país e o respeito à sua soberania. Hoje, representantes
estrangeiros interferem publicamente nos assuntos internos do país ou
conhecidas organizações monetárias internacionais fixam, unilateralmente, condições
humilhantes, em cláusulas de negociações, para ajudas ilusórias que,
internamente, agravam o sofrimento do nosso povo e, externamente, aviltam os
preços dos nossos principais produtos de exportação. E já se fala na execução
de acordos que abrirão o caminho legal para a instalação, em nosso território,
de importantes bases militares, sob o controle e o comando de outras nações.
Decretei, brasileiros, a regulamentação da lei de disciplina do capital
estrangeiro. Decretei o monopólio da importação do petróleo e a encampação das
refinarias particulares. Decretei a desapropriação de terras, objeto de
especulação do latifúndio improdutivo. Decretei a implantação da empresa
brasileira de telecomunicações. Lutei pela Eletrobrás. Decretei a limitação dos
aluguéis, dos preços dos remédios, dos calçados, das matrículas escolares, dos
livros didáticos. Hoje, os aumentos incontrolados do custo das utilidades
indispensáveis à vida do povo atingem limites insuportáveis.
Promovi, por todos os meios, campanha intensiva de educação popular,
para suprimir o analfabetismo em nossa Pátria. Estimulei os investimentos que
promovessem maiores oportunidades de trabalho. Quis vencimentos dignos para
todos os servidores públicos, civis e militares. Assegurei aos trabalhadores do
campo o direito legal de organizarem seus sindicatos e defendi o salário real
de todos os brasileiros, que deve acompanhar a elevação do custo de vida,
respeitando a liberdade constitucional dos seus movimentos reivindicatórios
legítimos.
Bati-me pelas reformas de base, para que o Congresso as votasse
democrática e pacificamente. Muitas vezes pedi a colaboração de suas lideranças
partidárias. Nada foi possível obter. Mas ninguém se engane. As reformas
estruturais, que tudo empenhei por alcançar, rigorosamente dentro do processo
constitucional, nenhuma força conseguirá detê-las e nada impedirá a sua
consecução. Neste dia, brasileiros, longe de todos, o pensamento voltado para a
memória de Getúlio Vargas, que tombou sacrificado pelas mesmas forças que hoje
investem contra mim, reflito sobre as permanentes verdades que o admirável
estadista denunciou em sua Carta-Testamento, e anima-se a confiança que tenho
no futuro do meu país. Não posso concebê-lo presa da intolerância, da tirania,
da ilegalidade, que são atitudes repudiadas pelos sentimentos generosos de
nossa gente.
Sem ressentimentos na alma, sem ódios, sem qualquer ambição pessoal,
conclamo todos os meus patrícios, todos os verdadeiros democratas, a família
brasileira, enfim, para a tarefa de restauração da legalidade democrática, do
poder civil e da dignidade das nossas instituições republicanas. Queremos um
Brasil livre, onde não haja lugar para qualquer espécie de regime ditatorial,
com uma ordem fundada no respeito à pessoa humana, no culto aos valores morais,
espirituais e religiosos do nosso povo. Queremos um Brasil justo, progressista,
capaz de assegurar confiança ao trabalho e à ação de todos os brasileiros.
Queremos um Brasil fiel às origens de sua formação cristã e de sua cultura,
libertado da opressão, da ignorância, da penúria, do atraso, do medo, da
insegurança.
Deus guiará o povo brasileiro para os objetivos patrióticos de nossa
luta.
FONTE: blogsocialistamorena
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