O HOMEM ROUBADO (versão atualizada)

Recentemente, viajei a trabalho para uma cidade do interior de Pernambuco. Estava de bem com a vida, grato a Deus pelas paisagens do nosso estado, pelo clima ameno, pelo povo simples e acolhedor. Talvez você se pergunte: por que começar contando sobre uma viagem aparentemente comum? O que isso tem de relevante?

Acontece que essa viagem me levou a um encontro que me tirou do automático e me colocou frente a frente com uma realidade que, muitas vezes, preferimos ignorar.

Fiz uma parada em Belo Jardim, num posto à beira da estrada. Desci pra esticar as pernas, tomar um café. Ali havia vendedores de frutas — laranja, umbu, milho — e, entre eles, um senhor que pedia ajuda, contando sua história de sofrimento. Vivia de cidade em cidade com a esposa e seis filhos. Confesso que, à primeira vista, achei que era mais um daqueles tantos que recorrem ao compadecimento alheio para conseguir uns trocados.

Na mesa ao lado, um rapaz se incomodou e o chamou de vagabundo. O velho reagiu com raiva, revidando verbalmente. Depois seguiu em sua via-crúcis, pedindo de mesa em mesa. Mas, pouco tempo depois, voltou até o rapaz e, chorando, pediu desculpas pelas palavras. Disse que não queria ter dito o que disse. Aquela cena me atingiu como um soco silencioso.

Fiquei pensando na dor contida naquele pedido de perdão. E mais: em quantas histórias invisíveis como a dele cruzam o nosso caminho todos os dias, sem que a gente perceba — ou queira perceber.

Sei que dar esmola não resolve a raiz do problema. O que muda, de verdade, é uma transformação estrutural. E essa mudança precisa começar em nós. Digo "nós", referindo-me à maioria da população — essa que vive entre o cansaço e a anestesia, entre a descrença e a rotina. Precisamos sair da indiferença, do discurso vazio, da crítica de sofá. Precisamos agir.

É urgente demonstrar, na prática, que não aceitamos viver num mundo injusto. Que ainda somos capazes de nos indignar. Que valores como solidariedade, justiça e cidadania não morreram. E que lutar por um mundo melhor não é utopia — é compromisso.

De que vale ter carro do ano, salário alto, a casa dos sonhos, se vivemos cercados por medo, desigualdade e desesperança? Essa sociedade violenta, excludente, desumana — ela cresce a cada dia. E pior: cresce porque muitos de nós achamos que estamos vencendo a vida, quando na verdade só estamos sobrevivendo dentro de bolhas frágeis e ilusórias.

Crescer na vida não pode se resumir a conquistas materiais. Vencer não é só uma questão de esforço individual. A vida é feita de contextos, encontros e oportunidades — e esses elementos não são distribuídos de forma igual. Fingir que são, é perpetuar uma mentira cruel.

Quanto ao senhor do posto, não tenho dúvidas de que ele não quer estar ali pedindo esmolas. E nós, que tivemos o privilégio de estudar, de ter um teto, acesso à saúde, à cultura, temos também uma responsabilidade: provocar o debate, propor caminhos, colaborar com a construção de um novo modelo de sociedade — mais justo, mais consciente, mais humano.

Como disse Chico Science:

“Posso sair daqui pra me organizar.
Posso sair daqui pra desorganizar.
Da lama ao caos, do caos à lama.
O homem roubado nunca se engana.”

O "homem roubado" não é só aquele velho esmoleiro. É também a criança fora da escola. O paciente na fila do hospital. O jovem sem perspectiva. O idoso esquecido. A mulher com medo. É a fome, a insegurança, o abandono, a crise climática.
O homem roubado somos todos nós, quando perdemos a consciência crítica e deixamos de nos indignar.

Comentários